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Uma reflexão sobre as problemáticas de uma identidade “afroindígena”

  • Por Laís Zinha
    Texto originalmente publicado no Medium

    Reformulando minha escrita e acrescentando um ponto fundamental que optei por deixar fora na primeira parte da minha reflexão sobre as problemáticas de uma identidade “afroindígena”, escrevo esse novo texto que tem como princípio uma interpretação minha constituída através de longas conversas com outros indígenas, de diferentes povos, ao longo de cinco anos, em que a esmagadora maioria apresenta o mesmo incômodo que eu. Deixo explícito desde já que a forma como construo minha reflexão não é necessariamente a reflexão dos parentes com quem conversei, mas do compartilhamento específico desse incômodo acerca da identidade “afroindígena”.

    Dividirei o texto em três partes, sendo a primeira voltada a uma fundamentação teórica no debate racial sociológico, a segunda constituída de uma análise focada na parte racial e a terceira parte é referente à especificidade dos povos originários: a identidade étnica.


    Introdução à questão racial brasileira na Sociologia


    O debate em torno das relações raciais é objeto de análise que parte da área da Sociologia, pois, o conceito de “raça” é um conceito sociológico. Então não é um conceito biológico como se tinha no século XIX com as teorias raciais. Disto, coloca-se de antemão a definição de raça de Guimarães (2003):

    discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue

    (GUIMARÃES, 2003, p. 96).


    Dessa forma, raça não é uma categoria natural, mas uma categoria construída que se analisa por meio dos discursos, que estão diretamente conectados com os processos histórico-sociais, políticos e culturais. Assim, para se analisar a questão racial é preciso ter em conta que ela é um debate territorializado, ou seja, específico do contexto de cada país. É muito importante também pensar em análises com recortes regionais, pois, não houve homogeneidade nos contextos que estruturaram as relações raciais no país.

    As análises clássicas em torno das relações raciais na Sociologia estão centradas na questão do negro na sociedade, como em Holanda (1936), Prado Jr. (1942), Bastide & Fernandes (1959) e Fernandes (1965), de modo que as produções posteriores na área as utilizam como referências primordiais para suas fundamentações teóricas (que explicarei adiante), como em Hasenbalg (1979) e Guimarães (2004; 2005; 2012), Campos e Machado (2015), Lima e Prates (2015), Lima, Machado e Neris (2016).

    A fundamentação teórica do debate racial, seja clássico ou contemporâneo, tem a presença indígena como alegórica, no sentido de que sua contribuição para a formação do país está relegada ao âmbito cultural, através de costumes e alimentação por exemplo, estagnada nos séculos XVI ao XVIII, como em Holanda (1936), Prado Jr. (1942), Bastide e Fernandes (1959), ou mesmo essa presença indígena é inexistente, pois, pensa-se a categoria indígena como uma questão puramente étnica… e ela não é.

    Assim, entro na questão de “indígena” enquanto uma categoria racial, ou seja, uma raça. É importante colocar desde já que, sim, existem povos originários/indígenas em todos os continentes do mundo, mas como disse anteriormente: debate racial é territorializado. E no Brasil, “indígena” foi construído como uma raça, sob a alcunha do “índio” principalmente. Não somente, mas a própria noção de raça somente surgiu com a invasão de Abya Yala a partir de 1492, como Quijano (2000) argumenta:

    a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes de América (…). A formação das relações sociais fundadas nesta ideia [raça], produziu em América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços.

    QUIJANO, 2000, p. 246


    Isto é, após a invasão de nossos territórios, as relações de dominação entre identidades sociais caracterizaram-se por uma hierarquização de conotação racial. De certo a “raça” no século XVI não tem a mesma concepção de “raça” que se tem na Sociologia atualmente, no entanto, repito: análises sobre “raça” são sobre discursos. Logo, por mais que fosse um discurso com referências a supostas diferenças estruturais biológicas e fenotípicas, não é a mesma concepção das teorias raciais do século XIX que buscavam naturalizar essas supostas diferenças com base em estudos biológicos. Por isso é importante colocar a questão do surgimento da noção de “raça”, pois, é a partir dela que se tem a estruturação do “índio” como uma raça no Brasil.

    E por que indígena é uma raça e não etnia? Porque “etnia” é sobre os mais de 305 povos que aqui existem atualmente. Estes povos são colocados dentro de uma grande categoria genérica (indígena) que tem seu viés racial devido aos processos de racialização que fomos submetidos ao longo de cinco séculos. Sendo racialização entendida como

    processo de caracterização das diferenças humanas de acordo com os discursos hierárquicos estabelecidos desde o período colonial e os legados nacionais de cada marcador.

    APPELBAUM, MACPHERSON & ROSEMBLATT, 2003, p. 2


    Portanto, ressalto novamente: indígena se estruturou como uma raça no Brasil sob a denominação “índio”, em que os processos históricos, sociais e políticos referente aos povos originários foram configurados de maneira a não distinguir etnicamente os “índios”, mas a criar esse caráter de generalidade racial… o que nos levará ao etnocídio e às próximas partes desse texto.


    Identidade racial e etnocídio


    Esta parte eu divido em três pontos que discorrerei separadamente: 1) não acredito que exista uma identidade racial afroindígena; 2) uma identidade afroindígena é etnocida; 3) a perpetuação de uma visão romantizada e racista do que é ser indígena.


    Não acredito que exista uma identidade afroindígena


    Reparei ao longo dos anos que ancestralidade é entendida de maneiras distintas por indígenas e não-indígenas. Falarei nessa parte sobre ancestralidade a partir da perspectiva do não-indígena (porque ancestralidade em nosso entendimento será na terceira parte desse texto): a identidade não é a ancestralidade. São coisas interligadas, mas não são a mesma coisa.

    Para tentar explicar essa diferenciação que ocorre entre identidade e ancestralidade, é preciso fazer um resgate histórico do Brasil acerca dos processos de miscigenação e embranquecimento e da construção do “índio”.

    O Brasil foi construído em cima da ideia de miscigenação, que foi na verdade um processo de extremas violências aos povos indígenas e ao povo negro, incluindo estupros das mulheres, genocídio e, em específico aos primeiros, etnocídio. Dessa forma, não existe ninguém com “sangue puro” nesse país… e não sou somente eu quem digo, estudos genéticos ao redor do mundo evidenciam isso (só pesquisar).

    Mas parece contraditório eu falar sobre estudo genético quando eu digo que raça não tem a ver com conceito biológico, né? Não é contraditório, pois, a questão sobre “pureza racial” é justamente uma questão de genética, que foi muito defendida pelos eugenistas e nazistas. Só por esse aspecto, já poderíamos simplesmente por dedução lógica pular a maior parte desse texto, mas infelizmente ainda precisamos explicar que pra ser de uma “raça” não se requere pureza racial. Ou seja, a democracia racial não existe e nem por isso “somos todos pardos”.

    Então, voltando à “pureza racial”, caso tenha dúvidas, faça um mapeamento genético e você descobrirá que em algum momento de sua árvore genealógica, terá existido alguma espécie de relacionamento inter-racial, mesmo que você desconheça, pelo simples fato de que a miscigenação no Brasil foi uma política de Estado que buscava criar um sentimento de união preconizado em uma identidade nacional… nesse processo, (o mito) a democracia racial foi um agente muito importante para disseminar essa ideia.

    Sobre os relacionamentos inter-raciais, é preciso deixar claro que “relacionamento” não implica necessariamente em consentimento ou algo positivo. Pois, o sequestro e estupro de mulheres indígenas foi uma ferramenta de dominação colonial muito utilizada e, inclusive, romantizada e legalizada (como na Lei de Pombal, que “incentivou” o casamento entre indígenas e brancos… nós indígenas sabemos o que realmente significava esse incentivo).

    Então, por conta da miscigenação e da consequente inexistência de pureza racial no Brasil, decorre-se que, de forma geral, temos combinações de ascendências/ancestralidades. Isto é, podem-se ter ancestralidades dos três povos ditos constituintes da nação: indígena, negro e branco. Não necessariamente dos três, mas também não somente de um, pois, estou partindo da colocação de que não há purismo racial no Brasil. Após o século XX, há a vinda dos amarelos e, portanto, constituem-se como um novo integrante nessa questão. O foco neste momento é anterior ao século XX, portanto, considerarei apenas indígenas, negros e brancos e desconsiderarei a questão do pardo, por motivos de que fugiria do meu tópico de reflexão nesse momento.

    Mas, afinal, e a identidade? A princípio, cada povo apresenta sua própria concepção de identidade e não pretendo me alongar nessas distinções, porque seria impossível, pois, para as tratar de maneira detalhadamente correta, precisaríamos conhecer a concepção do que é ser indígena para cada etnia (reconhecida ou não pela Funai), ou seja, mais de 305 povos, além da concepção da identidade negra/preta para os quilombolas e cada corrente do movimento negro e, por fim, da identidade amarela para os diferentes povos que estão englobados nesta categoria racial. Humanamente impossível, né? Então, trabalharei com o básico, partindo de duas perspectivas.


    A perspectiva estatal/legal/burocrática, centrada principalmente no IBGE através dos Censos e da PNAD.



    De forma resumida, atualmente há cinco categorias de classificação racial no país: indígena, pardo, preto, amarelo e branco. Por que eu falo atualmente? Porque a composição das classificações raciais não foram sempre assim, na verdade, ela é assim desde 1991. O primeiro recenseamento do país foi em 1872 e foi dividido em duas dimensões: população livre (branco, pardo, preto e caboclo) e população escrava (preto e pardo). Para além das inúmeras falhas metodológicas e analíticas desse recenseamento, foco minha atenção para a categoria caboclo, que esteve presente somente neste Censo e no seguinte de 1890, representando índios e descendentes de índios com brancos.

    Um importante fator a ser posto aqui é a questão de que “índio” era considerado como uma categoria social transitória até a Constituição Federal de 1988, ou seja, após passar pelos processos de integração social e assimilação cultural, índios deixavam de ser índios e eram realocados em outras categorias raciais (projeto explícito inclusive na elaboração das diretrizes do SPI/SPILTN). Castilho (2011) analisa a proposta do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que entende o índio por meio da “percepção de permeabilidade” (CASTILHO, 2011, p. 1), ou seja, a transformação do indígena em trabalhador agrícola através do poder tutelar: “através da educação eles deixariam de ser índios e se transformariam em trabalhadores nacionais” (CASTILHO, 2011, p. 14). O objetivo dessa transformação é de se criar um caráter nacional, respaldado na “mestiçagem”, e, assim, propiciar a imagem de uma sociedade concebida como homogênea.

    Essa configuração do “índio” como uma fase não se faz presente somente no século XX, desde a vinda dos jesuítas essa noção estava colocada, por meio dos processos de catequização e seus processos de educação. Freycinet (1825), narrado por Freire (2019), exemplifica muito bem esse processo de “desindianização” com a história do Quati César:

    Arborícola, de hábitos noturnos, César se adaptou às novas condições. Trocou a noite pelo dia. Em vez de vadiar na noite sobre árvores, dormia em beliche nos camarotes. Costumava assistir ao jogo de baralho dos tripulantes, quando aprendeu a beber vinho francês. Metia seu focinho nas canecas e chupava doses do “rouge qui tache”. Gostou. Viciou. Tomava porres homéricos. Virou alcoólatra. (…) Assim, o quati atravessa as três categorias em que ele divide os índios: “selvagens”, “semicivilizados” e “civilizados”. O quati, que era selvagem e arredio, torna-se “semicivilizado” e depois “humaniza-se”, já batizado com nome cristão, quando adota usos, costumes e vícios da tripulação, com a qual aprende a conviver.

    FREIRE, J. B. 2019, online


    Com isso, evidencia-se que a história do quati César se constrói como uma analogia ao processo de etnocídio, marcando o indígena em uma identidade dividida por três fases: selvagem, semicivilizado e civilizado, de modo que na história, narra-se como o quati César atravessa as categorias e, por fim, aprende a conviver com a população de marinheiros com quem viajou, em uma correlação com o indígena que assim o deixa de ser e se torna cidadão brasileiro.

    Reduz-se, portanto, a população indígena não somente através do genocídio — da morte física –, mas do etnocídio — da morte étnica e cultural –, através da estruturação das políticas assimilacionistas e integracionistas de Estado que, na prática, constitui-se como uma negação ao direito do pertencimento étnico-racial devido ao caráter transitório associado ao índio, em que tal identidade significa atraso e inferioridade diante das demais categorias raciais que, por sua vez, fazem parte do corpo nacional. Dessa maneira, Castilho (2011) argumenta que

    o indivíduo indígena conseguiria atravessar os poros da alteridade e inserir-se no corpo nacional concebido como civilizado. Porém, o sujeito indígena entendido como um sujeito portador de uma cultura diferente da concebida como civilizada, não conseguiria atravessar essa fronteira da alteridade interdita, constituindo-se assim como impermeável ao corpo nacional. Ou seja, o indivíduo indígena para inserir-se no corpo nacional através da educação assimilacionista, que visava transformá-lo em trabalhador nacional, teria que deixar de ser o sujeito indígena.

    CASTILHO, 2011, p. 15


    Obviamente tudo isso se refletiu nos recenseamentos de 1872 e 1890, de forma a gerar uma subnotificação da população indígena no país. Assim como é refletido até os Censos atuais, mesmo com a presença da categoria indígena, incluída somente em 1991.

    Como assim indígena só entrou no IBGE em 1991? Pois é, exatamente. Por “oficialmente” 101 anos, não houve uma categoria separada para indígenas nos recenseamentos, mas se formos tratar das problemáticas da categoria caboclo, então, podemos dizer que indígenas nunca estiveram separadamente de fato no Censo antes de 1991. A classificação racial foi excluída dos Censos de 1900, 1920 e retornou somente em 1940, mas somente com as categorias branca, preta, parda (alterada especificamente naquele ano para “mestiço”) e amarela. Nos posteriores recenseamentos, indígenas entraram invisivelmente na categoria pardo e assim se seguiu até 1991.

    Todos esses processos de exclusão e apagamento da identidade indígena se configuram como violências aos povos originários, que continuam sistematicamente tendo seu direito à identidade negado até os dias atuais, pois, há processos extensos e burocráticos para validar/legitimar a identidade de um indivíduo assim que ele se autodeclara indígena, principalmente se ele não residir em Terra Indígena, o que não ocorre com as demais categorias.

    Entretanto, embora contenham inúmeras problemáticas no IBGE, há um ponto que não pode ser negado: não existem categorias de classificação racial denominadas explicitamente birraciais ou plurirraciais. O pardo também está fora de questão, apesar de ter sua origem na ideia da mestiçagem, pois, ele se configura como uma nova identidade racial, que é alvo de críticas (extremamente pertinentes, por sinal) dos movimentos indígena e negro. Mas, o ponto é: pardo não evoca duas ou mais identidades raciais ao mesmo tempo. Pois, novamente, identidade não é ancestralidade. Não há nos meios burocráticos categoriais como afroindígena, euroindígena, euroafro/afroeuro, afronipo, nipoindígena, euronipo, etc.

    É possível até analisar a aplicação de políticas públicas de caráter racial, que são voltadas às categorias indígena, preto e pardo e constituídas de forma a pensar no atendimento das demandas e necessidades dessas três categorias. Mas esse seria um assunto pra outra hora…


    A perspectiva dos movimentos sociais e políticos que pautam a questão racial, em específico dos movimentos negro, indígena e amarelo.


    Como já falei anteriormente, não pretendo tratar especificamente de cada interpretação do que é a identidade negra, indígena e amarela dentro de seus contextos específicos. O intuito é o reconhecimento da constituição de cada movimento que se fez a partir de seus processos históricos e perspectivas e visões de mundo, todos distintos entre si. No entanto, há um consenso entre os três: uma pessoa branca é uma pessoa branca. Não há aceitação dentro dos movimentos negro e amarelo pessoas se autodeclararem euroafro/afroeuro ou euro-amarela (não sei nem qual termo seria, porque ainda bem que nunca nem vi falarem algo do tipo).

    No entanto, há uma aceitação quando somos nós que estamos na “identidade”, como já vi os casos de “euroindígena”, “afroindígena”, “sinoindígena”, mas a mais comum e difundida é “afroindígena”. O que nos leva à próxima questão da minha reflexão.


    Identidade afroindígena é etnocida


    Etnocídio é, resumidamente, o processo de extermínio das culturas e identidades indígenas/originárias, como exemplificado pelo Quati César. No Brasil, aplicado através de diversas formas: políticas de Estado e, também, de particulares; construção do pensamento e da identidade brasileira; criação do estereótipo do “índio”, etc. Cito os três, pois, são os que pretendo discutir pelo menos minimamente nessa parte, apesar de terem mais formas de aplicação dos processos etnocidas.

    Primeiramente, é preciso compreender o significado e a construção do termo índio, pois, está diretamente ligado com a questão da autodeclaração/autoidentificação e heterodeclaração/heteroidentificação das identidades indígenas. Índio foi um termo criado pelo homem branco para se referir aos povos originários de Abya Yala (continente hoje chamado América) desde a invasão em 1492. Em meio a construção do que era o índio, características de personalidade carregadas de preconceitos e discriminações raciais foram postuladas: selvagem, hostil, primitivo, preguiçoso, bugre. Além disso, o índio também carrega estereótipos fenotípicos e de costumes como, por exemplo: canibal (sic), anda pelado, tem cabelo liso lambido, olho puxado, pele vermelha, vive no meio do mato, em uma tribo (sic), tem que saber atirar com arco e flecha e zarabatana, não fala português, faz a “dança da chuva” e um som de “uh-uh-uh-uh” batendo a mão na boca como forma de comunicação… e uma última característica que permeia o índio é a ideia do “purismo racial”.


    Tá tudo errado!


    Mas foi assim que a imagem do que era o indígena foi construída e adentrou no pensamento social do brasileiro, persistindo até os dias de hoje.

    Apenas breves desconstruções e correções acerca dos estereótipos, antes de continuar minha reflexão sobre o porquê de afroindígena ser etnocida (não, eu não esqueci o objetivo disso tudo):


    A noção de primitivismo se teoriza através da criação e desenvolvimento do evolucionismo cultural na Antropologia, trazendo conceitos como tribo, que é explicado abaixo por uma imagem que de quebra expõe também a questão do primitivismo. Por que eu digo sobre teorizar? Porque esse pensamento não nasceu no século XIX, basta ver as cartas do próprio Pero Vaz de Caminha, da Igreja Católica sobre não nos considerarem humanos e não termos alma, sobre a escravização de nossos ancestrais e assim por diante.

    Bugre é um termo pejorativo que foi usado para designar principalmente indígenas não-convertidos ao catolicismo, mas também para justificar a escravização, pois, sua origem vem de conflitos religiosos na Bulgária no século IX e tem o significado de herege, isto é, quem está contra as doutrinas e dogmas da Igreja Católica.


    O mito do índio ser selvagem tem suas peculiaridades, pois, historicamente, convencionou-se duas representações acerca da identidade indígena, fundamentada e popularizada posteriormente no indianismo brasileiro: o bom selvagem e o primitivo hostil. Tais representações não permaneceram somente no âmbito literário, foram e são constitutivas no pensamento brasileiro.


    O bom selvagem era o índio aliado aos portugueses e que fora forçado aos processos de assimilação cultural e integração social para que saísse de seu estágio primitivo e animalesco e, posteriormente, viesse a ser um cidadão brasileiro e, portanto, “civilizado”. Aqui, novamente, encontramos a caracterização do índio como uma categoria social transitória. Esse indígena “aculturado” e “integrado”, no entanto, não viraria branco, daí surgem nomenclaturas para classificar esses “novos indivíduos”, a exemplo de tapuio, caipira, gaúcho, sertanejo, caboclo, caiçara, e até pardo. Disto, apaga-se a noção de uma identidade indígena e um falso pertencimento a outro grupo sem identidade étnico-racial definida.

    Ademais, como o índio apresenta uma premissa de suposto purismo racial, a partir do momento em que uma pessoa nasce de um relacionamento inter-racial em que pai ou mãe é indígena, essa pessoa já não é mais indígena, mas descendente de indígena, e assim serão todos os futuros indivíduos da linhagem. Essa postura de negação de identidade não se aplica às demais raças no Brasil, pois, elas não requerem o pressuposto do purismo racial como determinante para legitimar quem o indivíduo é racialmente. Isso é aceito naturalmente e reproduzido pela maioria da sociedade, sem produzir os menores questionamentos acerca da questão, pois, está profundamente penetrado no imaginário brasileiro que o índio é tal estereótipo do século XVI.

    Além disso, tem-se um cenário em que todos os povos têm o direito de acompanharem as inovações tecnológicas, culturais e sociais, com exceção dos povos originários, pois, estes devem permanecer de acordo com um estereótipo criado pelo homem branco no século XVI… e que sequer abrangia toda a diversidade e pluralidade dos povos indígenas, inclusive fenotípica!

    Dessa maneira, entra também a questão do que se convencionou como “fenótipo indígena” (cabelo liso lambido e escorrido, olho puxado e a pele parda avermelhada), construído novamente pelo estereótipo do homem branco baseado em determinados povos e que ignora completamente os processos de miscigenação e embranquecimento da população (que foram inclusive políticas de Estado, como já disse).

    Curiosamente, o estereótipo do índio vem carregado de elementos culturais de povos que sequer são do que é hoje chamado Brasil, a exemplo da famosa “dança da chuva”. O estereótipo do “índio” no Brasil é até de rituais de povos do Norte do continente. Sobre o som de “uh-uh-uh” batendo a mão na boca como forma de comunicação, há o processo de animalização, como se não soubéssemos nos comunicar através de línguas estruturadas e definidas. É fato que há povos que apresentam gritos que se assemelham a esse som, mas até onde eu sei, isso não é feito de maneira a bater na boca, mas mesmo que fosse… são específicos de cada povo, usados em momentos determinados com seus próprios significados.

    Um exemplo que me veio à mente em torno dessa situação, foi de uma parenta que ouvi em que uma vez fizeram esse som para um outro indígena no Rio de Janeiro, na época da Copa ou das Olimpíadas (não me recordo) e aquilo representava um chamado pra guerra no povo dele. Ele pegou a borduna e queria correr atrás da pessoa, então, essa parenta teve que falar que não era um chamado pra guerra, a pessoa simplesmente estava reproduzindo um estereótipo racial (racista) e, portanto, sendo babaca.

    Mas, afinal, e o primitivo hostil? Era o índio considerado em seu estágio primeiro, “puro”, “não-civilizado”, mas também se referia aos povos considerados inimigos da Coroa Portuguesa, basicamente, o oposto do bom selvagem. A representação do primitivo hostil frequentemente se associa ao tal do “canibalismo”, termo extremamente equivocado e pejorativo.


    A antropofagia é erroneamente chamada de canibalismo e é tida como caracterizante de todos os “índios”, contudo, os rituais antropofágicos não eram presente em todos os povos originários e tampouco esvaziados de significados, como a noção de canibalismo passa. Não, um indígena não vai te comer (literalmente), até porque os rituais antropofágicos são proibidos há mais séculos no Brasil. E como um parente Tupinambá faz piada: “essa história de que a gente comia os brancos não faz sentido. Nós nos alimentávamos da carne de outro ser humano pra absorver seu espírito guerreiro e sua força, por que nós comeríamos branco se eles só traziam doença e morte pra nós?” (pessoas brancas, isso é uma piada pra desconstruir o estereótipo que seus ancestrais criaram sobre nós, apenas superem e lidem sem fazer drama, faz favorzinho)


    Não, nós não somos preguiçosos nem éramos! Apenas tínhamos/temos outros modos de organização social, outra concepção de temporalidade, outra visão de mundo, outra relação com o meio que vivemos. Os europeus presos em sua lógica mercantil-capitalista não sabiam respeitar outras formas de organização social, política, econômica e temporal, porque eles acreditavam que os povos que não estavam no mesmo estágio que eles, eram atrasados e precisavam se desenvolver, então, impuseram seus modelos a todo o mundo, mesmo que implicassem em genocídios, massacres, subjugação e escravidão. Curiosamente, quem menos trabalha no mundo hoje é europeu, mas quem é designado como preguiçoso? Isso mesmo, não são eles… como o próprio Ricardo Albuquerque (sendo um Procurador da Justiça do Ministério Público) disse em uma palestra: “Problema da escravidão no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar”. E por que, na verdade, os europeus são os que menos trabalham? Porque há uma estrutura de exploração das terras colonizadas, fundamentada atualmente no imperialismo da Europa Ocidental e dos Estados Unidos… não, não é porque “são mais desenvolvidos”, há todo um contexto histórico que garante esse “estilo de vida” deles. Mas não vou fazer uma análise do sistema capitalista aqui porque não é o objetivo, certo? Certo.


    E os últimos estereótipos do índio que eu citei lá em cima que não são necessariamente inverdades, mas também não totalmente verdades. Explico…


    É o seguinte: sim, a nudez era algo presente em muitos povos, mas existiam povos que tinham suas vestimentas tradicionais também. E além disso, a nudez tinha sido proibida pelo Estado na colonização e foram impostas vestimentas aos povos originários, então… segue a lógica né? Óbvio que nós também “usamos roupa de branco” se quisermos.

    “Viver no meio do mato”, essa é uma expressão meio bosta pra mim, porque o não-indígena fala com um ar de algo negativo ou inferior, mas para nós não teria essa percepção. E, sim, a natureza era preservada e vivíamos/vivemos em harmonia com ela. A questão é: lembra dos processos de integração social? Então, isso significava, para além da escravização, retirar o indígena de seu território ancestral e o jogar ao léu nas grandes cidades, gerando um processo de marginalização e exclusão social, criando as famosas periferias urbanas. Então, sim, há indígenas na aldeia em meio a natureza, com as florestas em pé, preservadas (não à toa, ao redor do mundo, 80% da preservação das florestas e da biodiversidade está na mão dos povos originários). Mas também estamos nas cidades, vivendo em centros urbanos, podemos ser seus vizinhos. E também há aldeias nas cidades, que são as chamadas aldeias urbanas, por exemplo o Real Parque, sabe as favelas no Morumbi? Então, construídas em torno de aldeias e esses indígenas ainda vivem lá sim e continuam sendo indígenas.

    “Obrigatoriamente atirar com arco e flecha e zarabatana”: bem resumidamente mesmo, o Estado ao longo de cinco séculos proibiu os povos originários de exercerem e viverem em suas culturas, com suas práticas e tradições ancestrais. Além de ter forçado migrações e sequestrado indígenas de seus territórios. Em suma, não somos obrigados a saber, mas podemos saber, e se não soubermos, não somos “menos indígenas” por isso.

    Sobre o último estereótipo citado: não poder falar português. Historicamente, os povos originários foram proibidos de falar em suas línguas nativas e forçados a falar… adivinha qual língua? Português. Grande parte do Brasil até o século XIX falava majoritariamente o Nheengatu, é verdade, mas a imposição de outra língua, mesmo uma que seja derivada do Tupi Antigo (com influências do português de Portugal), ainda é uma forma de violência, principalmente para povos que não são/eram falantes de Tupi. Nesse contexto de imposição pra lá, proibição pra cá, muitas línguas se perderam e não podem mais ser recuperadas, então, sim, falamos português e também podemos falar nossas línguas nativas. Não, não é porque uma pessoa é indígena que ela sabe falar todos os idiomas indígenas, porque oficialmente existem 274 idiomas. Então, se você souber falar 275 línguas, você pode pensar em cobrar isso de algum indígena. Caso contrário, contente-se com o nosso português, que também podemos dominar (diferentemente do que o Ministério do Turismo tem propagado, mas essa é história pra outro dia, hehe). E nossas línguas nativas são uma forma de resistência, não nos cobre tradução se falarmos no idioma originário, talvez estejamos falando justamente pra você não entender.

    Depois dessa breve introdução ao debate do estereótipo do índio e da discussão sobre o processo de miscigenação no país, temos um contexto que a mentalidade do brasileiro é de negar ou apagar a identidade indígena dos debates que envolvem questões raciais e da construção histórica das identidades dos brasileiros. Esse contexto se dá por conta do etnocídio vigente, em que se tem uma postura muito comum de se taxar alguém na rua ou na internet de branco ou negro ou amarelo, pois, o indígena é associado ao estereótipo do índio e, consequentemente, nunca é cogitado. Essa questão falarei um pouco mais adiante.

    Em meio a essas questões de identidades, tem surgido um discurso de uma nova identidade: afroindígena, que é uma pessoa com ascendência negra e indígena. Não necessariamente é uma pessoa que não tem ascendência branca, mas não é isso que e leva em conta.

    Confuso? Um pouco.

    Retomemos quando falei de identidade. No Brasil, o Censo de categoria racial é feito por autodeclaração. Ou seja, perguntam qual sua cor/raça e você responde dentro de uma das cinco categorias supracitadas. No entanto, as políticas indigenistas no século XX estabeleciam que os índios precisam de heteroidentificação, isto é, a identidade indígena precisa ser confirmada por terceiros (geralmente um agente do Estado através do antigo SPI e da atual Funai) e somente com a Constituição Federal de 1988, rompe-se com a noção de categoria social transitória, ao menos no estatuto jurídico. Após 2004, quando a Convenção 169 da OIT foi promulgada no Brasil (ratificada em 2002), os povos originários garantiram o seu direito à autodeclaração, indo na contramão do Estatuto do Índio e da Funai (fundamentada nos princípios do Estatuto) e conquistando o direito de não estar submetido ao Estado para determinar quem é indígena ou não, retomando (mesmo que minimamente) nossa autonomia de autoadministração. Como a OIT é de estatuto supralegal, ela só está abaixo da Constituição e esta não dispõe de dispositivos referente à autodeclaração da identidade indígena.

    No entanto, a Funai em agosto de 2017 respondeu ao questionamento de um indígena Tupinambá sobre a questão da autodeclaração da seguinte maneira:

    É verdade que a Convenção 169 da OIT não é simplesmente sobre dizer “eu sou indígena” e acabou, há complexidades e é fundamental a questão do nosso pertencimento étnico, que é coletivo. Contudo, a resposta da Funai em colocar a questão da “formalização” faz com que se questione se realmente temos o direito garantido de nos autoadministrar e autodeclarar ou se o Estado ainda mantém o monopólio de dizer quem é indígena e quem não é.

    A sociedade tem papel fundamental nisso também, porque ela atua como agente legitimador do monopólio estatal acerca da identidade indígena, à medida que reproduz o discurso propagado pelo Estado do que é o índio. Em que há a constante postura de negar a indivíduos suas autodeclarações indígenas dizendo que “não são índios” porque não preenchem todos os requisitos estereotipados da cartela imaginária do que é ser indígena. E aqui não estou falando somente sobre a questão de indígenas urbanos, é comum ver em matérias de jornais, sobre representantes indígenas aldeados, comentários que dizem coisas como “é falso índio!”, “nem tem cara de índio, isso não é índio de verdade”, “tá falando português, não é índio”… ou mesmo coisas como “usa celular? computador? calça jeans? óculos? tem carro? vai à universidade? falso índio”, “é só descendente, eu também tenho uma bisa índia”. Em suma, constantemente temos nossa identidade negada, seja pela sociedade, seja pelo Estado. E morar na aldeia não livra nenhum indígena de ouvir comentários do tipo.

    É um processo de violência que nos atinge em qualquer ambiente, porque no pensamento social do brasileiro, deveríamos ter sido desaparecido no século passado, haja vista que éramos somente uma categoria social transitória e no período da ditadura militar, o governo explicitamente ter colocado como objetivo o extermínio dos povos indígenas (como evidenciado no Relatório Figueiredo).


    E onde entram os afroindígenas?


    Bom, como já falado sobre o processo de miscigenação e das políticas de etnocídio, muitos indígenas nascem e crescem em meio urbano e são designados como pretos, pardos ou até brancos (já vi também amarelo, por incrível que pareça). Essas pessoas crescem e (nem todas) buscam seu resgate histórico e étnico, iniciando o que chamamos de processo de autodeclaração. Não é algo fácil, não é algo simples, não é acordar um dia e gritar: eu sou indígena! Longe disso.

    Entretanto, é preciso reconhecer que essas pessoas muitas vezes partilham de outras ancestralidades, além da ancestralidade indígena. Retomando a primeira parte que expus sobre identidade ≠ ancestralidade. Mas, tem surgido pessoas que reivindicam as ancestralidades indígena e negra e se autodeclarando afroindígenas, discursando como viveram a infância e adolescência se reconhecendo como negras, que não são “lidas” como indígenas, que não podem abrir mão da ancestralidade negra. No fim, o lado afro prevalece e o lado indígena fica na penumbra… mas não há somente pessoas que se entenderam durante uma parte da vida como negras reivindicando essa identidade, há casos de pessoas brancas que também estão nessa questão, pois, argumentam justamente que “também têm ancestralidade africana e indígena”, como nesse caso que registrei de uma mulher branca:



    Não é uma observação apenas minha, não é um incômodo apenas meu, mas é recorrente a postura de atuação dessas pessoas no movimento negro, ao invés do movimento indígena, e quando se fala sobre a ancestralidade indígena, é sempre de um forma idealizada sobre a avó, bisa ou tata (que provavelmente foi estuprada) ou exaltando a questão das religiosidades e cosmologias indígenas, aquela coisa meio exótica, sabe?

    Particularmente, acho improvável uma atuação protagonista nos dois movimentos, pois, são processos históricos e sociais diferentes, que compartilham de aspectos, mas que até entre si diferem. Sim, estou falando de racismo, escravidão, genocídio, marginalização, encarceramento, violência policial, etc. Mas todas essas questões se manifestaram e se manifestam de maneiras diferentes entre indígenas e negros. Não são somente os processos históricos que diferem, as frentes de luta, as perspectivas e as atuações dos movimentos são gritantemente diferentes.

    Pra mim, é preciso que se reconheça isso e que se faça uma decisão política de reivindicar uma identidade racial, ao invés de criar uma identidade birracial. E essa reivindicação não significa abrir mão da ancestralidade negra ou indígena ou ignorar as suas experiências de vida. Eu falo como uma pessoa que também carrega algumas marcas da minha ancestralidade negra em mim, mas a minha identidade é indígena. Eu sou indígena. Não sou “descendente” de indígena. Não é porque sou “mestiça” que deixo de ser quem eu sou, porque brancos, negros e amarelos podem ser mestiços à beça sem serem questionados sobre essa miscigenação e terem suas identidades negadas somente por isso. Por que pra nós, indígenas, é diferente? Não deveria, afinal, todos são “mestiços” (ressalto de novo que “mestiço” é sobre genética também, porque mestiçagem é o contrário do purismo).


    “Mas você não é lida como indígena”


    Ninguém é lido como indígena praticamente nessa sociedade, porque vamos lá de novo: permeia o pensamento social de que o indígena é o índio, o que carrega consigo todos aqueles estereótipos. Só de falar português, um indígena já tem sua identidade questionada, embora constantemente escute: “mas você até parece”, “você é descendente né?”. Por que parecemos? Por que somos descendentes? Por que não podemos simplesmente ser? Eu já li por essa internet comentários de não-indígenas que parentes internacionalmente conhecidos na luta não são “índios de verdade”, porque estavam usando óculos ou tinham um celular ou porque “o olho nem é tão puxado”. Pra sociedade, a gente não teve o direito de sair do século XVI, tanto que é comum ler e ouvir por aí que “índio de verdade é aquele que vive isolado na ‘tribo’ no meio do mato”… ou você nunca viu alguém falar isso? Ou quem sabe até mesmo você já não falou isso, né?

    Escrevi um pouco mais sobre isso de “leitura social” aqui

    Pra finalizar essa parte,


    Por que, então, uma identidade afroindígena é etnocida?


    Como a próxima parte já enuncia, um argumento é de que ela perpetua uma visão idealizada, romantizada, estereotipada e até racista do que é ser indígena.

    Resumidamente, vou apresentar mais alguns argumentos em formas de tópico pra facilitar a minha vida e — tentar facilitar — a leitura de vocês:


    A criação de uma identidade afroindígena abre precedentes para a criação de uma identidade euroindígena e não se poderá reclamar da segunda se aceitar a primeira.


    Talvez faça sentido evocar o argumento de que negros e indígenas são minorias e sofrem com racismo, por isso não se equipara à criação de uma identidade euroindígena, pois, estaríamos falando de pessoas brancas reivindicando uma identidade birracial em que uma detém de poderes e privilégios decorrentes da estrutura racista, enquanto a outra sofre dos processos de violências e violações decorrentes do racismo. Sinto muito, mas não faz sentido.

    Por quê? 1) Processos históricos e sociais distintos entre negros e indígenas; 2) manifestação do racismo diferente entre negros e indígenas; 3) diferentes violências e violações aos povos originários e ao povo negro; 4) diferentes concepções de mundo entre os movimentos indígena e negro; 5) etnocídio é uma violência específica usada contra povos originários, de forma que não-indígenas não foram/são alvos dessas políticas; 6) não-indígenas não se constituem enquanto “negros” ou “brancos” por serem de determinadas etnias (explicarei na terceira parte desse texto); 7) burocraticamente, embora seja um argumento meio bosta (mas também não descartável), não existem categorias de classificação birracial como afroindígena, então, ao te perguntarem no SUS ou no IBGE (por exemplo) como você se autodeclara, você fará uma opção, certo? Essa decisão talvez diga muita coisa.

    E também é impossível ser indígena e não-indígena ao mesmo tempo basicamente, porque ser negro é ser não-indígena, então, como criar uma identidade birracial que por si só já é contraditória, haja vista que etnocídio é referente aos povos originários e constituinte em nossos processos históricos, sociais e culturais? Digo, não dá pra falar em indígena e não falar em etnocídio, então, enquanto não-indígena não há essa questão. E aí, como faz? Divide os momentos em que sofre as violências etnocidas e os momentos em que não sofre? Isso não faz sentido e isso é uma construção etnocida por si só, porque blinda pessoas não-indígenas não-brancas em nossos apontamentos de posturas e falas etnocidas.

    Mas por que não poderá reclamar de euroindígena e aceitar afroindígena? Se estamos falando de identidades birraciais ou plurirraciais, então, é preciso saber lidar que pessoas privilegiadas pela estrutura racista (brancas) se valerão dessa ferramenta para criar identidades birraciais que as contemplem, inclusive euroafro/afroeuro, porque essa questão vai além da identidade indígena, atinge também os movimentos negro e amarelo. Não somente criar novas com “euro”, mas já estão utilizando o próprio “afroindígena”.


    Ser indígena não é somente uma questão puramente de ancestralidade (no sentido que estou trabalhando nessa parte, porque explicarei o outro sentido na próxima também)


    Sem partir do pressuposto de que o que direi do modo como direi é um consenso ou de que estou estabelecendo que é isso para todos os povos, mas é uma constatação que sempre vejo nos debates entre nós, indígenas, sobre nossas identidades, sobre quem somos. E talvez eu esteja errada e tenha interpretado errado meus parentes e compreendido erroneamente os encantados e meus ancestrais, mas a questão de nossa religiosidade e espiritualidade nunca está descolada de quem somos, de nossa identidade, pois, a divisão do mundo físico com o mundo espiritual é uma criação do não-indígena. E também tem a questão de que “sangue indígena” no Brasil todo mundo tem, afinal, foi até uma política de Estado forçar relacionamentos inter-raciais.

    Mas também envolve nossos processos de formação e de descolonização de pensamento, nossas estruturas de pensamento, posturas e visões de mundo, nossas perspectivas e também nossa atuação na luta social e política. Neste sentido, há incongruências entre os movimentos negro e indígena. Não estou falando de forma alguma que não devemos nos aliar e construirmos lutas conjuntamente. NÃO. LONGE DISSO! É sobre o reconhecimento das diferenças entre os movimentos e suas atuações e perspectivas. Algo perfeitamente normal e saudável de se pensar, para que inclusive construções conjuntas sejam feitas harmonicamente e produzam resultados positivos para ambos.


    A identidade indígena acaba sendo apagada na própria concepção da identidade afroindígena


    Como uma parenta falou e de maneira a descontrair escrevo cá: “por que o afro vem na frente do indígena se nós estávamos aqui antes? Deveríamos falar em indígena-afro”. É em tom de brincadeira, mas poderíamos até questionar a construção de termos aglutinados, né? Mas deixo isso pra quem é da área, hahaha.

    Falando sério agora e referente a atuação social e política: como eu disse anteriormente, geralmente vejo pessoas que se autodeclaram negras e atuam no movimento negro reivindicando uma nova identidade afroindígena, fazendo referência ao lado indígena pelos aspectos culturais somente. Isso é problemático e incômodo não só pra mim, até porque só tive coragem de escrever sobre isso porque diversos parentes me deram apoio. Mas nesse cenário de protagonismo central no movimento negro e rápidas aparições no movimento indígena, temos questões de incompatibilidades sobre decisões e perspectivas históricas que nos enfraquece, que nos invisibiliza, que nos apaga… e também ferem nossas organizações sociais e políticas ancestrais (que falarei na próxima parte).

    Não há atualmente um movimento social e político que pauta identidades birraciais como afroindígena, então, as atuações se dão por dois movimentos distintos entre si (se houve a atuação no movimento indígena, que é geralmente quem sai perdendo em meio a isso tudo, por conta do etnocídio). Os indígenas que também têm ancestralidade negra, eu vejo que há justamente a questão que pontuei: o reconhecimento disso e sua valorização, mas não é a reivindicação de quem somos. Afinal, sabemos que continuamos indígenas independente de “miscigenação”.

    Inclusive, é importante colocar em questão que o processo de constituição das identidades raciais carregam cinco séculos de processos estruturantes e políticas muito delimitadas, que sistematicamente apagaram nossas identidades indígenas da história em uma tentativa de nos alegorizar em um passado, mas na prática, nós estivemos sempre em disputa de trazer à tona nossas narrativas e como a identidade “índio” sempre esteve presente e como se configurou, perdurando até os dias atuais. Assim, colocar uma identidade que remonta nossa identidade indígena sem realmente nos colocar em questão, como sujeitos ativos e com vozes sobre nossas histórias, é o mesmo apagamento que fomos submetidos e lutamos contra.


    A identidade afroindígena perpetua uma visão romantizada e até racista do que é ser indígena


    Optar pela criação de identidades birraciais ou plurirraciais quando se pensa em miscigenação com indígenas é uma forma de manter a ideia de que para ser indígena, é preciso de purismo racial.

    Sim, essa parte é só isso mesmo, porque acho que a construção do meu pensamento já foi exposta ao longo do texto e, com isso, dá pra finalizar essa segunda parte da minha reflexão em três linhas. Meu intuito não é desrespeitar ninguém, apenas expor uma reflexão minha que parte de um incômodo e espero que mais debates sobre o tema sejam feitos, assim como uma parenta querida vem fazendo também, a Geni Nuñez (Instagram: @genipapos).


    Identidade étnica


    Por fim e não menos importante (muito pelo contrário, é o principal), não há como falar em identidades indígenas sem falar em nossas identidades étnicas, porque o que nos constitui enquanto indígenas é nosso povo. Nesse sentido, coloco aqui uma breve explicação sobre o que é a ancestralidade pra nós, a partir das sabedorias que obtive com anciãs e anciãos e ouvi também de lideranças indígenas: nossa ancestralidade é nossa identidade. A ancestralidade pra nós não é um entendimento de simples “ascendência sanguínea”, mas é nosso pertencimento coletivo e conexão com nossos ancestrais que nos colocam em pertencimento com nossos povos. Nossa ancestralidade é nossa força ancestral que finca nossas raízes no solo e nos permite compreender nosso pertencimento coletivo.

    Esse é outro ponto extremamente importante: pertencimento coletivo. Nossas identidades se constituem por um pertencimento étnico e reconhecimento coletivo de nosso povo. Nós temos responsabilidades com nossos povos, não somos “indígenas” de maneira genérica, somos diversos povos com suas particularidades, diversidades e especificidades. Por isso, disse antes sobre ferir nossas organizações sociais e políticas, pois, “indígena” não é uma categoria racial que se basta por si só, ela evoca a necessidade do pertencimento e reconhecimento étnico, que se dá coletivamente. Não há como estarmos sozinhos em nossas organizações e atuações políticas, porque estamos com nossas coletividades. O canto “pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro” não é somente sobre nossa luta e resistência, mas sobre como não caminhamos só, como nossas vozes não são somente nossas, mas carregamos conosco a vozes de nossos ancestrais, de nossos povos, nós todos enquanto parentes estamos em união.

    A identidade “afroindígena” não evoca nossas identidades étnicas, ela esvazia o nosso ser, coloca-nos como uma identidade racial genérica, que desconfigura nossas organizações ancestrais de reconhecimento étnico e coletivo. É o que nós tanto lutamos contra o processo de racialização e etnocídio, que buscam nos tornar uma generalidade que não condiz com nossas perspectivas de vida, de luta, entendimento social e político e de nossa luta. Carrega consigo a perpetuação da ideia de como se nós não pudéssemos ter outras ancestralidades (no primeiro sentido que falei) para sermos indígenas, de que precisamos ser “puros”.

    As pessoas dizem: “mas eu não posso abrir mão de outro lado meu que é tão importante pra mim”, mas esse é um entendimento ocidental e eurocêntrico, porque desde sempre nós fomos e somos múltiplos e diversos… e nossos ancestrais sabiam disso.

    De forma que raça é sobre discursos, precisamos entender que discursos são políticos, não existe imparcialidade nisso, então, nós reivindicarmos nossas identidades indígenas em uma sociedade que a todo custo tenta nos apagar e negar quem somos é também um posicionamento político, de mostrar que continuamos existindo apesar de tentarem nos empurrar uma ideia de purismo (purismo esse que era uma ideia europeia na verdade, afinal, eles buscavam manter a “pureza” de suas linhagens mantendo relações inclusive entre familiares de primeiro grau). Ouvi na fala de um parente Tupinambá inclusive que nossos ancestrais sabiam que purismo não é um fator de adaptabilidade ao meio e também gera doenças, por isso diversidade genética, que se dava por relacionamentos entre diferentes povos, sempre esteve presente em nós. E mesmo com essa diversidade sempre presente, nós sempre continuamos sendo quem nós éramos, com nossos povos específicos.

    Se sempre fomos diversos e múltiplos, por que não continuaríamos sendo atualmente? Só nos prende a um passado imaginário de purismo quem desconhece a nossa história.

    Estar perdido em meio a sua identidade não deve ser motivo para romper com nossas tradições ancestrais e métodos de organização social em nosso pertencimento étnico. Se a vontade é de não “abrir mão” do sangue indígena que carrega, é perfeitamente possível vivenciar e conhecer as culturas indígenas. Também não podemos naturalizar algo que não nos é pertencente: as ideias de colorismo e leitura social. Pois, nossas identidades não se definem pelo tom de pele, pelo tipo de cabelo, mas por nosso pertencimento e reconhecimento étnico, que se dá de maneira coletiva… há muita coisa envolvida que nós temos muito cuidado para manter viva essa memória e honrar nossos ancestrais que lutaram para não deixar isso se perder, pra não deixar os projetos etnocida e genocida vencerem.

    Se nós, indígenas, acatarmos com o discurso de “leitura social”, estaremos perdendo o que nos é primordial em nossos pertencimentos: nosso povo, nossa coletividade. Não é a palavra de terceiros, dos não-indígenas, que têm o poder de definir nossas identidades, nós temos nossos métodos e ferramentas para nos autoadministrar, para nos reconhecer enquanto povos originários, por mais diversos que sejamos. Lutamos para acabar com a tutela e conquistar nossa autonomia, pois, que não percamos também o que sempre nos foi constituinte. Nossas identidades não são individuais. Os não-indígenas não sabem reconhecer nossas pluralidades de rostos, cores e traços, quem dirá saber nos diferenciar etnicamente. Não deixemos que eles ditem o que nós somos pela leitura que eles fazem de nós.

    Não somos do nosso povo porque somos indígenas (como seria caso a identidade racial fosse o que vigora sobre quem somos, assim como é entre não-indígenas). Somos indígenas porque somos do nosso povo, porque temos nosso povo. Para ter o “pertencimento racial” indígena, é preciso ter o pertencimento étnico.

    Seguimos sendo indígenas reconhecendo que podemos ter todas as tonalidades de pele, pois, quando dizemos que “somos da cor da terra”, é porque nossa Mãe tem muitas cores, desde a mais clara até a mais escura; reconhecendo que temos todos os tipos de cabelo, pois, assim como o liso pode ser a queda da cachoeira, o cacheado e o crespo podem ser a copa da árvore, o careca pode ser a semente que germina. Somos a terra e nossos traços estão presentes não só em nossos corpos, mas também na Natureza. Nos vemos em tudo o que nos cerca, nos constitui e nos conecta.

    Seguimos sendo indígenas independente da “mistura” com outros povos, inclusive não-indígenas, porque a nossa identidade está em nosso povo e tudo o que carregamos a partir desse pertencimento e reconhecimento étnico, que é coletivo e é ancestral.

    Não tenho certeza se esqueci de pontuar algo importante ou de explicar algo melhor, mas foi o que senti que deveria escrever nesse momento, da forma como escrevi.