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A Casa Grande Sempre Ganha

  • Leop Duarte
    Texto publicado originalmente na página Dissecando o Racismo

    Por mais feliz que eu possa estar em ver uma pessoa negra ganhando uma bolada, (man)ter consciência de certas coisas significa que nem com todas as louras perfumadas do mundo vou conseguir ignorar o futum de merda por baixo dos panos. Uma vez conhecida a dinâmica secular das coisas, fica difícil desver o que já devia ser pra lá de reconhecível

    Adoraria achar que é a inocência que leva a tantos de nós a festejar a vitória da Thelma e até considerar tal feito um passo rumo a “reparação histórica”, mas falo demais e há muito tempo do umbiguismo que (co)move a atual geração de pretos e pretas pra me dar a esse luxo. Até entendo que muitos não entenderão as migalhas que esse 1,5 milhão representa na fila do pão, mas acho que quem não quer entender o que a demanda pelo Auxílio Emergencial significa já escolheu não enxergar nada que desfaça seus devaneios de Cinderela ou correntes filosóficas de marfim enegrecido. #Joices

    O mais zoado é que geral já deve ter visto algum filme sobre cassino ou já ouviu em algum outro lugar o que todo mundo já sabe, ou deveria saber, sobre jogos de azar: a banca/casa sempre ganha. Afinal, não sendo uma instituição de caridade não há como esperar que alguém “dê” milhões a qualquer alma “sortuda” sem ter como ser ressarcido(a) de alguma forma. Aquele ditado: NÃO existe almoço grátis. No caso da plim-plim hoje foi noticiado que a emissora ganhou mais que o dobro de todos os prêmios finais somente em uma única noite de exibição. Contudo, esse não foi o maior ganho dos ioiô Marinho essa edição. Todo esse alarde e repercussão ajuda muito nos recentes esforços da marca em se desvencilhar da imagem de racista/conservadora que a fez não jogar pesado – como sabemos ser capaz – contra a campanha presidencial de um candidato que flertava com a ditadura que a fortaleceu. Uma jogada necessária em tempos de politicamente correto e #Repre$entatividade para os mesmos responsáveis pelo fuzuê “intelectual” contra as cotas, por uma Salvador fictícia majoritariamente branca e pela vitória de uma racista nada velada na última edição. No entanto, o golpe de mestre dessa cartada final foi o banho de água fria que a gigante das telecomunicações deu nos influencers, pois caso alguma das outras ganhasse a Globo estaria assumindo pro mundo que as narrativas fabricadas e editadas por ela não tem mais peso nenhum diante do impacto dos exibicionistas-solo de redes sociais. Um golpe tão bem dado que passou até batido diante dos festejos dos cidadãos “desconstruídos” que demonstraram estar antenados com o que há de mais raso no debate racial.

    Dito isso, o que mais me incomoda nesse bando de gente autodeclarada “consciente” comemorando o pirão cheio de uma só formiguinha é que quase ninguém parece se atentar pro retrocesso que a narrativa da personagem remete. Grande parte dos argumentos em defesa da Thelma são tão meritocráticos que não me espanta que tantos bozominions conhecidos(as) – tá boa, Larissa? – chegaram a endossar a torcida. Alguém mais otimista poderia achar que teria mais gente ligada nos “proceder”, mas nem…

    O que teve de gente saudando a participação de uma pessoa negra que “não se vitimiza” – como o concorrente que apenas compartilhava a realidade que ele e tantos mais encaram – não tá no gibi! A novidade foi a dentadura dos #PretosNoTopo caindo ao não apontar o erro rude nisso porque essa de preferir negros que não levantam bandeira (radical/segregacionista) enquanto esperam que quem a levante faça plantão voluntário pra mover todos os pauzinhos possíveis tá mais que batido. Outra marola que passou desapercebida foi o argumento de que “ela merece porque batalhou muito para superar obstáculos até se formar médica”. Zero novidade num país que constantemente reforça que não há nenhum critério de sucesso que não passe pela busca de se igualar aos herdeiros da casa grande. A essa altura, espero não espantar ninguém que a cambada #OkoopaTudo correu juntim com os cidadãos “de bem” na crença de que não adianta ralar pra crlh se não for pra correr atrás de um diploma/matrícula pública, pois só instituições brankkkas são honrosas o suficiente para conceder méritos “legítimos”. Mas fazer o que se a maioria nem vê problema em louvar como ela rebate o racismo sem deixar de ser ‘educada'” – leia-se: me agrada assistí-la engolindo sapo a beça e sendo bem professorinha com dondocas que sempre tiveram mais acessos e oportunidades que ela sem a amarras ou ameaças diretas.

    Agora me diz como numa sociedade profundamente racista como a nossa poderia estar se “desestruturando” – ou a um passo a mais de se desestruturar – quando o principal porta-voz dessa mesma sociedade escravocrata permite que uma única pessoa negra ganhe uma bolada – merreca em suas projeções de lucro? E ó que o clima é de quarentena e suspensão e recessão econômica! Adoraria não precisar dizer o óbvio, mas se toda a nossa estrutura social/política/econômica/etc. depende do racismo sobre a maioria da população para se manter de pé, não será um ou alguns poucos indivíduos negros erguidos/pinçados que vão fazer verão. E essa é a parte mais fétida debaixo desse “banquete”: a nítida mensagem de que para vencer no jogo dos brancos a gente tem que saber dançar a valsa deles ao ponto de não mais “ver cor”, como canta o mito da democracia racial. O nem tão implícito recado de que, caso queiramos “subir” ao patamar deles nossa solidariedade com eles deve se sobrepor aos com os nossos. Aquele ditado: a premissa básica do racismo continua sendo o narcisismo europeu – que nos leva a atribuir proveito somente no que reflete os valores/ambições que servem de alicerce pra casa grande. #AGenteSeVêNaGlobo

    Por fim, o mais bizarro dessa comoção toda é que, além de ter sido na edição seguinte a da vitória de uma das participantes com mais declarações racistas rebatidas na casa, na penúltima edição outra mulher (discutivelmente, porém autodeclarada) negra se consagrou campeã em cima das mesmas acusações de vitimismo que limou Babu da final. Ou seja, nem três anos se passaram e o público já saúda a emissora pelo feito “inédito” pela segunda vez. Um feito nada surpreendente de uma edição autonarrada como sendo da #Sororidade embora todos saibam ser um programa produzido, dirigido, apresentado e comentado por homens nada diverso e agora, segundo aclamação pública, bem menos racistas. Depois essa mesma galera “ciente” tem a pachorra pra criticar os minions por ignorarem o que tem sido publicado por estudiosos “com cor”. Vai entender! Aquele ditado: na tela da TV, no meio desse povo, a gente vai se fazer de bobo. Esperar o que, se boa parte dos peixes que caíram nessa rede consideram “Empoderamento se recortar/podar pra caber em ideologias com pedigree europeu e se sentem representados por um programa que há duas décadas tem uma cota máxima de duas pessoas negras?!

    #TeEnganaDaíQueEuMeEnganoDaqui