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O direito à cidade e o ato de implorar direitos ao Estado para protagonizar a gentrificação

  • Iara Igbalé
    Texto originalmente publicado no Síntese Socialista

    O que faz pensar direito à cidade inspirades nas experiências das vitrines liberais europeias? Até que ponto reivindicar direitos urbanos não é trilhar o mesmo caminho que as metrópoles internacionais percorreram rumo ao êxito capitalista? Quais foram as consequências das políticas de participação e inclusão democrática dos países centrais nos territórios periféricos? Caímos num risco de consolidar um novo polo da dominação capitalista, colonizando outras margens? Quem tem acesso aos instrumentos de participação previstos na legalidade do sistema democrático de direito e a que setores esta forma de fazer política interessa?


    I –“Os gentrificadores focam na estética, não nas pessoas. Porque as pessoas, para eles, são a estética”.

    Ao ouvir falar de gentrificação em territórios colonizados, automaticamente lembramos das grandes imobiliárias, instituições financeiras, construtoras e claro do poder público, afinal a abordagem deste termo numa perspectiva materialista apenas visualiza as dinâmicas capitalistas de exploração e dominação a nível macro-econômico e político.

    Contudo, creio que a consolidação de uma realidade social, não é decorrente meramente das engrenagens macropolíticas, mas sobretudo, resultado de uma convergência entre esta, a produção simbólica e as experiências cotidianas que reverberam diretamente no que cada sociedade designa como cultura. Não cabe aqui negar a potente influência que a macropolítica e a macroeconomia tem na realidade simbólica e cultural, mas apenas mudar o trânsito tradicional e trazer o isolamento macro-econômico, proposto pela prática e análise materialista, como uma estratégia insuficiente para emergência de uma realidade anticapitalista, ecocêntrica, feminista, participativa, autônoma e livre.

    O termo gentrificação, na literatura urbanista, refere-se ao processo de reorganização da geografia social urbana no aspecto da habitação ou circulação e seu processo de valorização fundiária. Este conceito, trazido primeiramente pela socióloga Ruth Glass em 1963, ao fazer uso do termo gentry (nobreza, burguês ou aristocrata), denuncia a higienização social realizada em Londres, baseada em estratégias de dominação, ressignificação e exclusão. Por sua vez, os atuais debates urbanistas estão trazendo relevantes considerações que permitem ensaiar sobre simbolismo e cultura gentrificadora como partes indissociáveis dos processos de gentrificação, agora atuando de forma mais sofisticada e não necessariamente protagonizados pela alta elite econômica ou pelo Estado, mas sim por um nicho cultural e artístico emergente.


    II – “A metropolização é um processo derivado da urbanização, típico das sociedades do capitalismo tardio”.

    O capitalismo global trouxe consigo a luta pelo local/regional e o reforço de uma identidade frente a ameaça que uma massificação universalista provocou. Contudo, alguns símbolos das culturas locais transformaram-se estrategicamente em características identitárias agregando tradição, resistência e a cultura da alteridade hegemônica como capitais culturais, atribuindo-lhes um grande valor simbólico/mercantil e criando novas marginalizações. 

    Em outras palavras, para o capitalismo as identidades locais e regionais vendem e tem um alto potencial mercantil. Não precisamos traduzir as experiências marginalizadas pelo capitalismo para uma linguagem que ele entenda, na realidade precisamos destruir as forças e as tecnologias marginalizadoras para garantir uma realidade de coexistência entre as múltiplas possibilidades de viver socialmente.

    Desta forma, proponho uma reflexão crítica sobre o local de anunciação dos discursos que disputam por mais atuação nas políticas de urbanização. Se um modelo de urbanização capitalista euro-estadunidensse pode trazer uma predação, subserviência econômica e não refletir a cultura local, um modelo terceiro-mundista de urbanização, como deslumbre de uma ideia euro-urbanocêntrica, pode trazer não só a sofisticação e expansão dos centros-motores do capitalismo como também irá demandar a criação, a partir da exclusão, de novas zonas periféricas.


    III – “As discussões sobre direito à cidade, infelizmente, ainda são elogios ao concreto e uma exaltação à vida urbana capitalista segregadora”.

    Nos territórios terceiro-mundistas, a cultura periférica e popular não pode ser facilmente ignorada, ela se faz latente e imperante no dia a dia urbano. A elite artística e cultural gentrificadora, aciona seus esforços na tentativa de pensar a cidade numa perspectiva ‘mista’ reconhecendo claramente que há uma distinção de interesses e experiência. Ignorar a existência do popular e do periférico em tempos de questionamento do sistema democrático, não agrega valor político. Desta forma, as ações políticas que se dizem voltadas ‘para as pessoas’, apesar de questionarem algumas corporações capitalistas e a proteção que o poder público faz delas, acabam por colonizar setores periféricos, alegando agregá-los quando na realidade exploram seu potencial político para construírem o que a suas experiências classemedisticas e brancas entendem como urgentes.

    No Ocupe Estelita, por exemplo, não foram raras as vezes que tentou-se usar o termo político afim de diferenciar a ocupação do Cais em relação às demais – como se as ações protagonizadas por quem luta por moradia não fossem políticas. Para aquela região, o que a elite artística e cultural gentrificadora, que discursa direto à cidade, prevê, são projetos ‘mistos’ que mesclam à adesão de moradias populares verticalizadas, edifícios garagens, espaços culturais e comércio sofisticado. O cotidiano, dinâmicas, narrativas e produção de cultura dos setores populares atuais, ainda não são atraentes aos espaços culturais desta cidade, nem ao menos a produção artística mainstream e hype se interessa em promover pontos de cultura e espaços de sociabilidades periféricos e marginalizados. Na realidade, eles continuam ainda muito bem segregados.

    Os espaços culturais reivindicados por vários ativistas simpáticos a luta do Estelita prezam pelo acesso a uma cultura urbana propagada pela convergência das múltiplas informações midiáticas (TV a cabo, smartphones, internet, cinema e revistas especializadas); pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação; pelas novas tendências que a elite artística e cultural produz e pelo sentimento cosmopolita de perspectiva neoliberal. Nestes espaços, a produção de cultura dos setores marginalizados apenas consegue adentrar a partir de uma apropriação objetificadora, que transformam-na em  produtos exóticos e/ou divertidos afim de, ora reforçar uma identidade local de inspiração fascista, ora agregar capital cultural colonizando e fetichizando músicas, gírias, comportamentos e estéticas. Na contramão de um texto publicado pelo grupo Direitos Urbanos, a dissertação Recycling Manhattan de Joana Lúcia Bem-Haja de Almeida, descreve que o processo de gentrificação que assolou SoHo, em Nova Iorque, foi desencadeado, sobretudo, pela grande atração de artistas e pelo discurso de preservação do patrimônio histórico, algo que se assemelham bastante com o discurso de ‘direito à cidade’ ecoado no cenário político de Recife.

    A história do mercado do loft living em Nova Iorque, mostra como a alteração da paisagem abandonada para uma zona artística ou cultural não representa uma vitória da cultura face ao capital, mas sim um enaltecimento do capital usando a cultura como plataforma. Primeiramente ocupado por manufaturas e depois por artistas de baixa renda, o estilo de vida ‘cool’ rapidamente contaminou o bairro atraindo artistas e não artistas de classes mais abastadas, inflacionando o mercado, transformando os lofts living em imóveis valorizados e expulsando as manufaturas e artistas que não se adaptaram à transformação do bairro. A experiência do loft living, por exemplo, denuncia como as ideias de preservação arquitetônica e agitação cultural podem ser apropriadas para serem exploradas comercialmente, aquecendo setores estratégicos da economia capitalista.

    As experiências referenciadas por Joana deixam claro que existe um conflito de classes. A própria definição de uma área urbana ‘sub-utilizada’ só assim é, porque não são nada atraentes para os passeios das famílias nucleares heterocapitalistas deste nosso humanoidismo fantástico,  tudo em nome da segurança e da segregação social.

    IV – “Como principal palco da dominação capitalista, pensar na vida urbana implica também em pensar nos aspectos políticos do que reproduzimos inconscientemente, apenas por estarmos em locais e territórios políticos pré-determinados”.

    Pensar gentrificação como fenômeno urbano, implica diretamente em pensar nos efeitos e nos mecanismos de funcionamento capitalista. Deste modo é possível perceber o esquema baseado em abandono, marginalização, especulação, ressignificação e valorização como trajetória básica em vários campos da economia capitalista. Compreendendo a gentrificação também por este esquema, podemos pensá-la simultaneamente como metáfora, aplicável na cultura, artes e alimentação. Nestes campos, por exemplo, o maracatu, o candomblé, a literatura de cordel, a capoeira, a xilogravura, o café, entre outros, já foram desvalorizados e estigmatizados, por ocuparem de alguma forma, um território marginalizado pela imposição racista, colonialista e cientificista – políticas, não por acaso, à serviço do capitalismo. A ressignificação destes elementos e sua consequente valorização emerge ao se tornarem aptos para serem explorados por setores da economia capitalista, onde culturas subalternas, técnicas marginalizadas e alimentos estigmatizados, agora podem gerar capitais. Claro que este raciocínio pede uma elaboração mais complexa, e uma explanação mais desenvolvida, mas o interesse em trazer à tona esta perspectiva, é para dar luz a um simbolismo e a uma cultura gentrificante, inerente à atividade capitalista.

    A emergência da racionalidade, enquanto principio de estar e entender o mundo, bem como o projeto moderno de sociedade são resultados de um simbolismo gentrificante. A melhor e única saída possível da idade das trevas.  A própria ciência é gentrificadora, no momento que se apresenta como verdade em detrimento de outras leituras, se apropriando, posteriormente, do não-científico que descartou para se sofisticar e se manter imponente.

    A gentrificação enquanto fenômeno urbano, é uma ínfima expressão inevitável de uma macro-estrutura gentrificadora, que só consegue existir a partir da criação de margens e que só se mantêm imponente porque ressignifica o que excluiu, para assim criar outras e novas margens. Enquanto o principio da descartabilidade norteado por uma ética hierárquica não for questionado, a ocupação de espaços urbanos jamais irá priorizar possibilidades de convivências não regradas por um imperativo de classes, por exemplo.

    Discursos de deslumbre ao viver o centro e os que creem numa possibilidade positiva da gentrificação, regidos por um mix de arrogância e tolice, consideram sua interferência e as consequências que sua luta política podem trazer, como algo contrário as grandes ações gentrificadoras corporativas protegidas pelo Estado. Embora reconheçam os reflexos inflacionários que trazem consigo, ao problematizar a higienização e a gentrificação por escalas, isentando-se de se reconhecer como cúmplice e colaborador de um aperfeiçoamento capitalista, fica evidente que um estilo de vida baseado em comprar em sebos ser mais importante e mais prioritário do que a construção de práticas que rasguem os finos lençóis que cobrem as raízes das opressões e as novas marginalizações que elas estão por engenhar.

    Iara Igbalé, tradutora anarquista, terrorista anti-industrial, feminista, anti-humanista e ativista pela Frente de Libertação da Terra.